O Kathakali é uma das manifestações tradicionais de Kerala. A combinação de dança e teatro reúne com oponente expressividade personagens mitológicos do universo religioso indiano. Deuses, demônios e seres sobrenaturais entrelaçando-se na beleza entre forma e movimento.
Originário de Kerala, extremo sul da Índia, o Kathakali (katha, estória; kali, jogo) é um estilo de dança teatral interpretado exclusivamente por homens. Sua origem está intimamente ligada à história de Malabar (o antigo nome do estado de Kerala). Segundo a mitologia hindu, Malabar teria nascido a partir da rachadura provocada pelo machado de Parasurama.
Guerreiro considerado a sexta encarnação do deus Vishnu, Parasurama teria vindo à terra para proteger a supremacia espiritual e social dos brâmanes (a mais alta casta hindu). De espírito extremamente belicoso, o guerreiro decidiu encerrar sua trajetória sangrenta através de um gesto simbólico: deixou cair seu machado ao sul da Índia. Entretanto, através desse poderoso golpe, uma faixa de terra emergiu: era Malabar. Para povoar esta terra, o guerreiro Parasurama trouxe várias famílias brâmanes do norte da Índia, que se estabeleceram e formaram uma sociedade particularmente cativa do gosto pelos rituais. Desse modo, a arte teatral Kathakali teria surgido como forma de tornar os profundos ensinamentos dos Vedas (escrituras sagradas do Hinduísmo) acessíveis a todas as castas.
O caráter sacerdotal da performance do ator, no entanto, vai além da função de propagar a sabedoria védica: ela requer uma identificação mística entre ator e os deuses que devem encarnar em cena. Outra característica que revela o papel religioso do Kathakali é a oferenda de dinheiro ao ator que representa Krishna (figura central do Hinduísmo), como se o entregassem ao próprio deus para obtenção de alguma graça. Segundo o historiador e indológo francês Alain Daniélou, no Kathakali, o ator uma vez maquiado, já não é ele mesmo. "Tampouco nos dirigimos mais a ele, mas sim ao personagem que encarna, e o veneramos como tal." De fato, a majestosa e colorida indumentária aflora as figuras mitológicas hindus desumanizando a figura do ator.
Ornamentado com uma das maquiagens mais complexas do mundo, o rosto do “ator-sacerdote” do Kathakali possui altíssimo grau de expressividade facial, gerando a sensação de “esculpir” minúsculos movimentos. As cores, que assumem funções específicas, correspondem à natureza de cada entidade: os moradores das florestas, caçadores e demônios femininos são representados pela predominância do preto; os heróis são caracterizados pela pintura facial verde; os personagens com grandes bigodes pretos representam selvagens como características heróicas; já os personagens de bigodes vermelhos seriam representações de seres terríveis e destrutivos.
Geralmente realizados como uma oferenda ao tempo e a sua divindade regente, os espetáculos de Kathakali obedecem a uma seqüência de ritual de etapas sagradas, que se inicia pela manhã e transcorre até o final da tarde. Uma grande lâmpada a óleo é então colocada na parte da frente e central do palco e anuncia a apresentação. O primeiro som a se ouvir sobre o palco é a batida grave de um tambor, que simboliza o grande som original, o primeiro som do Universo (na versão hindu sobre a teoria do "Big Bang", o deus Shiva teria criado o Universo batendo violentamente em seu tambor). Após a Todhayam e o Purappadu (duas danças introdutórias que evocam benevolência e energia criadora), iniciam-se as histórias inspiradas em grandes épicos, que revelam um universo povoado de deuses, super homens, demônios e animais mitológicos.
São apresentadas duas ou três peças por noite, com duas a quatro horas de duração. A programação da noite se encerra habitualmente com uma peça onde, no final, um demônio é infalivelmente morto de forma terrível, em uma cena de grande impacto. Ao final do programa, quase sempre sob as primeiras luzes da manhã, Krishna retorna à cena para uma rápida dança de agradecimento aos deuses e à platéia. O Natya Shastra, um dos mais antigos textos indianos sobre o teatro, a formação do ator e a dramaturgia clássica da Índia diz que "o homem que assiste devidamente a apresentações de música ou drama obterá, após a morte, a feliz e meritória estrada em companhia dos sábios brâmanes".
O desenvolvimento espiritual possui um papel de grande importância na Índia (ratificado, inclusive, pela mitologia acerca de Kerala, em que Vishnu é o responsável pela origem do estado indiano).
Além disto, outros fatores também contribuem para essa manutenção religiosa, como a teoria do karma e das sucessivas reencarnações. E, deste modo, em uma sociedade em que a oralidade é uma das principais formas de transmissão cultural, o teatro Kathakali é encarado não apenas como uma cerimônia esotérica, pública, mas também como uma oferenda subjetiva aos deuses; um meio de crescimento individual, tanto para quem faz, como para quem o assiste.
Autor
Anna Anjos é ilustradora e artista plástica. Atua para publicidade, editorial, moda, mobiliário e cenografia. Apaixonada por música, mitologia, folclore e antropologia cultural.
www.annaanjos.com
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